domingo, 31 de maio de 2020

Canção adolescente



Para o Luís Pedro Fonseca,
pelo que, em todos nós, a adolescência é perene.


Hoje, deixa-me ficar
Aqui, no quarto, sozinho.
Baixa o estore devagarinho,
Fecha a porta de mansinho
E, a quem te perguntar
Onde eu estou ou possa estar,
Diz que me pus a caminho.

Que fui em busca de mim,
Não sei se longe se perto,
Se no mar se no deserto,
Se a sonhar ou se desperto,
Se no princípio se ao fim
De quem sou ou ao que vim,
No que é seguro ou no incerto.

Que não sabes como o faço,
Se com prazer se com dor,
Com preguiça ou com suor,
Calmamente ou com ardor,
Se progrido a cada passo
Ou se é à força de braço
Que abro mundo em meu redor.

Que, ao regressar, porventura,
Depois de cumprido ou feito,
Traído ou, até, desfeito
Aquilo a que me respeito,
Não trarei nem amargura
Nem tristeza, só ternura
P’la vida a bater no peito.

Mas se, ao voltares da rua,
Me encontrares ainda aqui,
Descobrirás que o que vi,
Quis, soube, amei, pressenti,
Foi o que uma praia nua,
Entre o horizonte e a lua,
Sussurrava sobre ti.
2012

À conversa com Xico Zé Henriques



A vida não é força nem poder,
Verdade ou ilusão. Nem o destino
de se ter sido posto à beira-ser
da imagem do ser de um Deus-Menino.

Nem lágrimas, prazer ou simplesmente
acto de procriar o que, existindo,
existe só de modo inconsciente
desse seu mesmo ser que vai cumprindo.

Não tem sentido nem ausência dele.
Está para além do espírito e da pele,
de um finito que esboce o Paraíso.

A vida não é coisa que se explique.
Ela é nós, naquilo que em nós fique
da mais pura essência de um sorriso.
2009

Pequena canção de Outono



                    para Xico Zé Henriques

Levei o meu coração
à varanda. Tão bonito
que é vê-lo contente, à solta,
ir de mim ao infinito…!

Entranhar-se no poente
ao alto de um velho monte,
e assomar com as gaivotas
que o rio põe no horizonte…

Envolver-se com a brisa,
numa folha e, de mansinho,
apoiar-se em cada passo
de quem vai no seu caminho…

Fazer companhia à lua
p’los telhados, a escutar
os sonhos que a minha rua
fica à noite a segredar…

E, ao fim, quando alguém me chama
lá de dentro, entrar comigo
como um gato que tivesse
encontrado um novo amigo.

P’ra de novo, no lugar
que é o seu, ser ele o dono
de mim, e em mim soar
a Primavera no Outono.
2009

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Perlimpim-pim



“Morra o Dantas, morra! Pim!”
Almada Negreiros
Pim?
Mas quem sabe
o que haverá
no fim?

Cagarim cagaró?
Jeropiga e pão-de-ló?
Ou nem
pó?

De Almada vê-se Lisboa.
De Lisboa vê-se Almada.
Tudo tudo gente boa!
Só gente mal-educada!

Mas isto não fica assim…!

Pim!

Bocejo



Bocejo.

A hora cai
pesada.
Não sinto
o que vejo
e o que sinto
não vejo.

Minto
é claro.

Bocejo.

Nada.

Desespero
eu?
Não.
Faço como os outros.
Espero.

Olho para o céu
olho para o chão
olho para o lado
às vezes parado
às vezes sentado
outras vezes
não.

Xó, cão!

Acrescento ainda



tento estar
atento
olho escuto
toco provo cheiro

nada sei por inteiro

tudo me é astuto

vazio ou
sem alento

de mim não sou senão
irregular
titubeante
a limpar o nariz
nem sempre o bastante
ao vento

e o que peço
miserável
ou exijo arrogante
é que ao menos
no último instante
algo se cumpra em mim
enfim

acrescento
por fim
sem um lamento

sábado, 9 de maio de 2020

Canto meu



Para Lúcia Helena Lemme Weiss, no seu aniversário

Eu queria ter o cântico das flores
Que transforma em pétalas as cores
Num coro de perfume cintilante
E soar como a nuvem lá no alto
Pondo notas de luz em sobressalto
No rumor da chuvada transbordante

E poder entoar como o regato
O canto maternal doce pacato
Que fala do ter alma ao peixe mudo
E possuir o eco majestoso
Do hino imaterial silencioso
Que cada pedra e astro espraia em tudo

Queria para mim a voz de todo o ser
Para mim a canção do seu viver
Com a força do simples existir
O auge do que é uno elementar
Do que em si mesmo encontra o seu lugar
Sem ânsia de voltar nem de partir

Porque se eu ergo a voz para cantar
É a vida que toma o meu lugar
Celebrando o seu reino em toda a parte
E o canto nem é meu nem de ninguém
É dela querendo ir ainda além
Tornar-se sem medida enquanto arte

Despedida


(musicado por Xico Zé Henriques)

Pela última vez te digo
que não vás.
Fica comigo.
O mundo, afinal,
é tão pequeno…!
É do tamanho de um amigo,
do amor…
A dor,
essa é que é imensa!
Pensa
mil vezes pelo menos
antes de partires.

Mas se vires
que a angústia ou o que o viver
não dão para mais,
abraça-me no cais,
de olhos enxutos.
E que seja o teu olhar uma verdade
maior do que a distância
ou que a saudade,
que eu traga sempre,
sempre,
junto a mim.

1982

terça-feira, 5 de maio de 2020

Regresso (pour faire joli)


Ao longe, ao fundo, o farol,
pedra branca a enfeitar
a pele verde e azul do rio
perfumada pelo mar.

Uma vela e uma nuvem,
deslizando par a par,
vão-nos desvelando a luz
que vive dentro do olhar.

Mas por sobre o casario,
como asa que o sobrevoa
e o sombreia, calada,
há uma névoa em que ressoa,

vago, difuso e etéreo,
temivelmente discreto,
uma espécie de mistério
que se tornasse concreto

no acostar de um navio
rangendo aventura e mágoa,
na risada de um menino
que apanha estrelas na água,

num tom de cio e tristeza
de vida em fio da navalha,
num canto a languidescer
de amores de fogo de palha

numa prece iluminada
pela visão do craveiro
que Deus fez subir à fresta
de uma cela do mosteiro,

num bocejo de revolta
e num rugido de medo,
num relógio que bate horas
sempre tarde ou ainda cedo.

Algo que é como saudade,
lucidez ou desatino,
do desejo da vontade
de amar o nosso destino.

Algo que vem lá do fundo
do mundo de cada um,
como se um fosse todos
e todos fossem nenhum.

E há, por fim, uma voz,
dentro da alma, que ecoa,
fazendo-o entrar em nós:
“Aterrámos em Lisboa!”

domingo, 3 de maio de 2020

Sonho de menino


(musicado por Xico Zé Henriques)

Ai!, tão bom que seria
a gente ver raiar o dia
e de repente
estar tudo tão diferente
que a nossa felicidade se chamasse
toda a gente

Ai!, tão bom que seria
poder enfim olhar de frente a alegria
não ouvir a voz do medo
da fome da tirania
da vergonha e do segredo

Ver o teu corpo lindo à luz do sol
ver pintada de riso uma viela
e mil fogueiras a dançar pela cidade
com a chama da verdade
num rodopio sensual
ao bater de uma chinela

Ai!, tão bom que seria
adormecer
e acordar no sonho de um menino
e não do de alma penada
volteando amargurada
em busca do seu destino…
1980

Aqui


Aqui me meço
Aqui me esqueço
E arrefeço

Aqui me beijo
E me desejo
Aqui me falo
Aqui me calo

Aqui me espanto
Aqui me sento
Aqui me sei
Aqui me tento
Aqui me canto
Aqui d’El-Rei!

Aqui me dói
Aqui me rói
Aqui me danço
Aqui descanso
Aqui me canso
Aqui me ranço
Isto destrói!

Aqui me abuso
Aqui confuso
Aqui me forço
E me desforço
Isto é da Lei?
Aqui d’El-Rei!

Aqui me sinto
Aqui me dou
Aqui me minto
Aqui me sou.
1978