terça-feira, 28 de abril de 2020

Sem mais (sobre o Fado Licas)


O sol ora se ergue ora se deita;
e assim, tal como ele, também nós
passamos na cadência que sujeita
a vida em que soa a nossa voz.

Vêm e vão a sede, a fome, o sono…
Vêm e vão de novo… E o coração,
do qual, embora meu, não sou o dono,
bate o tempo da minha duração.

Nisto algo me encaminha sem caminho,
dentro e fora do corpo em que me enleio,
em que me acho e perco, quer sozinho
quer tendo outro corpo de permeio.

Voltarei ao mistério de onde vim,
de onde trouxe este modo de aqui ser.
E o que sou não chega nem p’ra mim…
De meu, só o amor p’ra oferecer.

Poemas (sobre o Fado Isabel)


Poemas são só as notas
à margem da nossa vida,
esconjuros de feiticeiro,
troços de rota perdida,

brasas que voam do lume
do mistério que arde em nós,
grito de prazer, queixume,
pranto alegre, riso atroz,

preces surdas para domar
o Tempo que nos devora,
vingança pura a brilhar
com a beleza da aurora,
  
piruetas e magias
de iludir o desencanto,
ilhas secretas que emergem
do fundo de um mar de espanto…

Que poemas como barcos
à descoberta da vida
esses canta a minha boca
se anda na tua perdida.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Borboleta preta


vinda de repente
do fundo do nada
uma borboleta
preta
de asa rendilhada
transparente
delicada
pousou sobre o teu corpo
nu

e tu
riste deslumbrada
e divertida
ao veres-te ainda mais
despida

Volta não volta


(à memória de Vinícius de Moraes)

Vivo, desde há muito tempo,
perdido numa aflição:
é que não sei se ainda caibo
dentro deste mundo ou não,
ou se ele é que já não cabe
dentro do meu coração.

A confusão surge quando
não consigo compreender
se afinal estará o mundo
a minguar sem eu ver,
se será o coração,
pouco a pouco, a encolher.

Pois não acho cabimento
em tornar-se desmedida
a medida do que foi
medido pela própria vida
p’ra existir, e assim ficasse
a vida, em si, dividida.

Depois vem mais a questão
de saber o que sentir,
que o coração não sossega,
não dorme, sonha dormir,
por não saber, acordado,
onde ficar nem p’ra onde ir.

E talvez porque não chego
a nenhuma conclusão,
girando em redor do mundo
por dentro do coração,
lá ando eu, volta não volta,
às voltas numa canção.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Leo



Tem o cabelo pintado
de um sol de negro azeviche,
com chamas vermelho-louco
de um inferno muito fixe.

Cravou um piercing na língua,
um clip na sobrancelha,
mais uma argola no lábio
e outras cinco em cada orelha.

Vai chocalhando a pulseira
de pedras do Oriente
em forma de cascavel
quando quer ferrar o dente.

Mesmo ao cimo do decote,
pisca que pisca um sinal
que, em horas de menos sorte,
nunca a deixou ficar mal.

No ombro, leva um falcão,
na mão, um gato francês.
À perna, prendeu o cão
que lhe morreu há um mês.

Atira para a sargeta
um restinho da memória,
que enrolou numa mortalha
p’ra perfumar certa história.

Mandou calar o Universo
e até o deus que lhe acode
fica em silêncio, p'ra que ela
se oiça a mascar iPod.

A sua bota bicuda
pisa de alto a avenida.
Toda a calçada saúda
o passeio que faz da vida.

De arrasar o Festival
Beira-Tejo, poderosa,
segura, vai Leonor
para a Fonte Luminosa.

A saber de Lisboa



Em Lisboa já se sabe
o Tejo é lume
que ilumina a madrugada
dos amores
a Sé ergue até ao Céu
vício e ciúme
e a Ribeira é o castelo
dos sabores

Em Lisboa já se sabe
há uma ponte
que são duas avistando
um cacilheiro
a singrar por  entre as ondas
do cansaço
de quem vem já atrasado
do Barreiro

Em Lisboa já se sabe
há sempre um gato
que apregoa p’los telhados
o Janeiro
e uma boca a segredar
que veio nua
à varanda a vizinha
do primeiro

Em Lisboa já se sabe
vive um puto
a fintar o mundo inteiro
p’las esquinas
e azulejos onde moram
sorridentes
São Vicente Santo António
e as varinas

Em Lisboa já se sabe
há mil gaivotas
e mil pombos mil pardais
mil andorinhas,
que num golpe d’asa varrem
mil derrotas
para dentro do braseiro
das sardinhas

Em Lisboa já se sabe
a lua paira
por detrás do reposteiro
do horizonte
sobre o carreiro furtivo
de quem vai
a esgueirar-se p’la viela
ali defronte

Em Lisboa já se sabe
cada rua
é um novelo de passos
de ninguém
e nas fendas da calçada
nascem  flores
que por vezes nos dão ares
de ser alguém

Em Lisboa já se sabe
há um poeta
a beber pelos cafés
a sua sombra
e o fantasma do futuro
que nos cerca
com a vela de um navio
que nos assombra

Em Lisboa já se sabe
há uma voz
que a guitarra não permite
sossegar
a lembrar o que será
de todos nós
na cidade que ainda está
por inventar

E tudo o mais que há
sem nunca haver
todo o mal e todo o bem
e o que não cabe
mas nos cabe no viver
e no morrer
há e cabe em Lisboa
já se sabe

Lugar de mim


A ilha não sabe como há-de estar:
Se a enfeitar a terra prometida
Ou se foi posta ali à beira-mar
Para lembrar a urgência da partida.

Nem sabe que perfume há-de exalar:
Se a sangue derramado na refrega,
Se a pêssego maduro que, ao luar,
Abençoa o amor na sua entrega.

As ondas, envolvendo-a de brancura
Na imensidão azul que a sustenta,
A cada instante a moldam na figura
Que de si para si o tempo inventa.

E eu quase julgo ouvi-la, como alguém
Que diz “Tal como tu sou só metade
Do caminho de um sonho, que também
Se encontra a meio caminho da verdade”.

Ao lado, entardece a povoação,
A polvilhar de brilhos o poente,
Chamando, do infinito, a embarcação,
Que se aconchega a ela, docemente.

No céu aponta a lua, em tons do sal
Que dá sabor à brisa. E, ao chão,
Acrescentam-se casas, em que mal
Cabe mais do que um simples coração.

Três gatos a brincar às sete vidas
Emaranham sorrisos pelo largo,
De um copo saem histórias esquecidas
Enquanto o Zé Inácio grelha um sargo.

A noite, que enfim chega, sorrateira,
Depois de certa hora, por magia,
Faz ver o som das vagas na lareira
Em que descansa a luz até ser dia.

E alguma coisa em mim, num despertar
Que chega do que é velho e do que é novo,
Que eu não sei o que é, vem aportar
Ao que, em mim, se chama Porto Covo.