quinta-feira, 11 de junho de 2020

Balada da Avenida das Descobertas


Encontrei, há bocadinho, o Velho do Restelo,
ao volante de um Porsche, a subir as Descobertas.
Ia a casa da Glória, mesmo ali, em Caselas,
que lhe deve obrigações e lhe faz umas ofertas.

Sem barba, está mais novo, mais composto… E mais cordato.
Que isto… é claro, afinal… tudo tem suas vantagens…
É que os tempos mudam e, bem… só há que acompanhá-los.
Ele hoje até é sócio de uma agência de viagens,

de uma rede de turismo de luxo no Brasil,
tem negócios na Guiné, Moçambique… E, em Angola,
está ligado a um consórcio de pedras preciosas
e a uma escola de talentos para os gajos da bola.

Enfim, vai-se safando… Comprou casa no Estoril;
uma, assim… discreta, para os aféres, em Odivelas;
outra ainda, na praia; uma herdade no Alentejo;
um iate; e uma quinta, lá para cima, em Nelas.

Protegeu-se também, é natural… Estamos na selva!
Cada um trata de si, cada um seu apetite…
Contribui para a oposição, tem um primo em Bruxelas,
dois amigos no governo e um sobrinho na judite.

Falando com franqueza, sabemos que nunca foi
de se gabar, mas desde muito novo que ele viu
que a vida, no fim de contas, não é senão o quê?
Comer bem, beber melhor, fornicar, obrar macio.

Mas a poesia…! Tomou-lhe o gosto! O Pessoa
É para o metido com ele, mais, vá!, para o trombudo…
Agora o Camões… Tratou-o mal, mas era um espectáculo!
Tanto, que hoje tem um dia que é só dele e tudo!

É que não, não há melhor fingidor do que um poeta
(lá nisso, convenhamos, o Pessoa tem razão).
E Camões, meus senhores, foi pioneiro nessa treta
maior que é Portugal a fingir, Portugal-nação.

A visão precoce que o homem tinha do futuro!
Da grande festa enfeitada por nuvens de medalhas…!
Dos discursos emplumados sobre a compra da dívida
dos barões assinalados nas modernas batalhas…!

Camões, porém, não chega, é preciso inovação!
Comer sempre a mesma coisa, a certa altura cansa.
Vai-se juntando outros, à laia de sobremesa…
Mas só de carnes mortas, não se envenene a festança!

E o 25 de Abril…! Também foi dado aos poetas!
Mas aos da nova geração, os da modernidade,
que cravam no futuro as palavras como setas,
não vá faltar alguém à união na Liberdade!

"E tu, meu velho camarada, amigo e companheiro!
Que tens feito tu, que às vezes lhe dás no relambório?
Olha-me a tua vida, pá! Escreve-me qualquer coisa!
Trata dessa carreira, junta-te ao foguetório!

Saudades à família!" – Acenou-me. Arrancou.
Segui-lhe o conselho, escrevi isto. E cá me vou.

(Para que não reste qualquer dúvida:era para a ter publicado ontem, mas não quis correr o risco de ser mal interpretado...)

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A gota que o mar deixou



(musicado por Xico Zé Henriques)

A gota que o mar deixou
esquecida sobre o teu peito,
ao ouvir-te o coração,
estremeceu e deslizou
serena, com muito jeito.

No princípio hesitante
sobre o caminho a escolher,
andou errante entre os seios,
ficou parada um instante,
depois voltou a descer.

E, assim como quem seduz,
passou vagarosamente
mesmo à beira do umbigo,
molhando o ventre de luz
eterna do sol poente.

Movido pelo deleite
que te brilhou no olhar,
fui apanhá-la na concha
da língua e com ela dei-te
o meu desejo a provar.

Remissão


(após um diálogo ouvido, entre dois seminaristas,
sobre a incompatibilidade entre o bem e o barulho)

O bem nunca faz barulho.
Discreto, determinado,
É como onda sem marulho
Que alastra por todo o lado.

Surge puro, sem motivo,
Do mais profundo da alma,
Com força de imperativo
Que só, ao cumprir-se, acalma.

É convicto e está seguro,
Na sua recta intenção,
De servir como senhor
De sentimento e razão.

Faz, do outro, outro de si.
Dá-lhe a sua própria vida,
Numa cadência imparável
Rumo à Terra Prometida.

Espontâneo, firme e humilde,
Barulho não lhe faz bem,
Não o estraguem a maldade
E a inveja que o mundo tem.

Mas depois, feitas as obras,
Sabe bem um barulhinho…
Já podes gemer mais alto
Sem acordares o vizinho.

Chocolate (sobre o Fado Bailarico)


Disseste que o chocolate
com que pintaste os meus lábios
era feito com o amor
de cem mil segredos sábios.

Mas também foste deixando
e demorando os teus dedos,                         
como quem quer misturar
mais um, em tantos segredos.

Saber é saborear
o gosto que a vida tem,
se lhe soubermos juntar
o sabor de um outro alguém.

Só que eu fiquei sem saber
ao que me soube no fim:
se aos dedos se ao chocolate,
se mais a ti ou a mim.

Por isso, agora nem sei
o que me sabe melhor:
se ao que sabe o chocolate
se o que tu sabes do amor.

Menos olhos que barriga


Cai a alça. Pisca um olho,
que ficou meio aturdido,
mas que levanta o sobrolho
p’ra se fingir divertido.

Sobe a saia. A confusão
invade agora o segundo.
Mesmo assim, ganha a razão,
depois de um suspiro fundo.

Sê discreto, tu vê lá!
Não me faças má figura,
- diz um para o outro – que eu cá
nunca perco a compostura.

E assim vai esta guerra
por dentro de cada homem…
A fome que come a Terra,
só porque os olhos não comem!

domingo, 31 de maio de 2020

Canção adolescente



Para o Luís Pedro Fonseca,
pelo que, em todos nós, a adolescência é perene.


Hoje, deixa-me ficar
Aqui, no quarto, sozinho.
Baixa o estore devagarinho,
Fecha a porta de mansinho
E, a quem te perguntar
Onde eu estou ou possa estar,
Diz que me pus a caminho.

Que fui em busca de mim,
Não sei se longe se perto,
Se no mar se no deserto,
Se a sonhar ou se desperto,
Se no princípio se ao fim
De quem sou ou ao que vim,
No que é seguro ou no incerto.

Que não sabes como o faço,
Se com prazer se com dor,
Com preguiça ou com suor,
Calmamente ou com ardor,
Se progrido a cada passo
Ou se é à força de braço
Que abro mundo em meu redor.

Que, ao regressar, porventura,
Depois de cumprido ou feito,
Traído ou, até, desfeito
Aquilo a que me respeito,
Não trarei nem amargura
Nem tristeza, só ternura
P’la vida a bater no peito.

Mas se, ao voltares da rua,
Me encontrares ainda aqui,
Descobrirás que o que vi,
Quis, soube, amei, pressenti,
Foi o que uma praia nua,
Entre o horizonte e a lua,
Sussurrava sobre ti.
2012

À conversa com Xico Zé Henriques



A vida não é força nem poder,
Verdade ou ilusão. Nem o destino
de se ter sido posto à beira-ser
da imagem do ser de um Deus-Menino.

Nem lágrimas, prazer ou simplesmente
acto de procriar o que, existindo,
existe só de modo inconsciente
desse seu mesmo ser que vai cumprindo.

Não tem sentido nem ausência dele.
Está para além do espírito e da pele,
de um finito que esboce o Paraíso.

A vida não é coisa que se explique.
Ela é nós, naquilo que em nós fique
da mais pura essência de um sorriso.
2009

Pequena canção de Outono



                    para Xico Zé Henriques

Levei o meu coração
à varanda. Tão bonito
que é vê-lo contente, à solta,
ir de mim ao infinito…!

Entranhar-se no poente
ao alto de um velho monte,
e assomar com as gaivotas
que o rio põe no horizonte…

Envolver-se com a brisa,
numa folha e, de mansinho,
apoiar-se em cada passo
de quem vai no seu caminho…

Fazer companhia à lua
p’los telhados, a escutar
os sonhos que a minha rua
fica à noite a segredar…

E, ao fim, quando alguém me chama
lá de dentro, entrar comigo
como um gato que tivesse
encontrado um novo amigo.

P’ra de novo, no lugar
que é o seu, ser ele o dono
de mim, e em mim soar
a Primavera no Outono.
2009

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Perlimpim-pim



“Morra o Dantas, morra! Pim!”
Almada Negreiros
Pim?
Mas quem sabe
o que haverá
no fim?

Cagarim cagaró?
Jeropiga e pão-de-ló?
Ou nem
pó?

De Almada vê-se Lisboa.
De Lisboa vê-se Almada.
Tudo tudo gente boa!
Só gente mal-educada!

Mas isto não fica assim…!

Pim!

Bocejo



Bocejo.

A hora cai
pesada.
Não sinto
o que vejo
e o que sinto
não vejo.

Minto
é claro.

Bocejo.

Nada.

Desespero
eu?
Não.
Faço como os outros.
Espero.

Olho para o céu
olho para o chão
olho para o lado
às vezes parado
às vezes sentado
outras vezes
não.

Xó, cão!

Acrescento ainda



tento estar
atento
olho escuto
toco provo cheiro

nada sei por inteiro

tudo me é astuto

vazio ou
sem alento

de mim não sou senão
irregular
titubeante
a limpar o nariz
nem sempre o bastante
ao vento

e o que peço
miserável
ou exijo arrogante
é que ao menos
no último instante
algo se cumpra em mim
enfim

acrescento
por fim
sem um lamento

sábado, 9 de maio de 2020

Canto meu



Para Lúcia Helena Lemme Weiss, no seu aniversário

Eu queria ter o cântico das flores
Que transforma em pétalas as cores
Num coro de perfume cintilante
E soar como a nuvem lá no alto
Pondo notas de luz em sobressalto
No rumor da chuvada transbordante

E poder entoar como o regato
O canto maternal doce pacato
Que fala do ter alma ao peixe mudo
E possuir o eco majestoso
Do hino imaterial silencioso
Que cada pedra e astro espraia em tudo

Queria para mim a voz de todo o ser
Para mim a canção do seu viver
Com a força do simples existir
O auge do que é uno elementar
Do que em si mesmo encontra o seu lugar
Sem ânsia de voltar nem de partir

Porque se eu ergo a voz para cantar
É a vida que toma o meu lugar
Celebrando o seu reino em toda a parte
E o canto nem é meu nem de ninguém
É dela querendo ir ainda além
Tornar-se sem medida enquanto arte

Despedida


(musicado por Xico Zé Henriques)

Pela última vez te digo
que não vás.
Fica comigo.
O mundo, afinal,
é tão pequeno…!
É do tamanho de um amigo,
do amor…
A dor,
essa é que é imensa!
Pensa
mil vezes pelo menos
antes de partires.

Mas se vires
que a angústia ou o que o viver
não dão para mais,
abraça-me no cais,
de olhos enxutos.
E que seja o teu olhar uma verdade
maior do que a distância
ou que a saudade,
que eu traga sempre,
sempre,
junto a mim.

1982

terça-feira, 5 de maio de 2020

Regresso (pour faire joli)


Ao longe, ao fundo, o farol,
pedra branca a enfeitar
a pele verde e azul do rio
perfumada pelo mar.

Uma vela e uma nuvem,
deslizando par a par,
vão-nos desvelando a luz
que vive dentro do olhar.

Mas por sobre o casario,
como asa que o sobrevoa
e o sombreia, calada,
há uma névoa em que ressoa,

vago, difuso e etéreo,
temivelmente discreto,
uma espécie de mistério
que se tornasse concreto

no acostar de um navio
rangendo aventura e mágoa,
na risada de um menino
que apanha estrelas na água,

num tom de cio e tristeza
de vida em fio da navalha,
num canto a languidescer
de amores de fogo de palha

numa prece iluminada
pela visão do craveiro
que Deus fez subir à fresta
de uma cela do mosteiro,

num bocejo de revolta
e num rugido de medo,
num relógio que bate horas
sempre tarde ou ainda cedo.

Algo que é como saudade,
lucidez ou desatino,
do desejo da vontade
de amar o nosso destino.

Algo que vem lá do fundo
do mundo de cada um,
como se um fosse todos
e todos fossem nenhum.

E há, por fim, uma voz,
dentro da alma, que ecoa,
fazendo-o entrar em nós:
“Aterrámos em Lisboa!”

domingo, 3 de maio de 2020

Sonho de menino


(musicado por Xico Zé Henriques)

Ai!, tão bom que seria
a gente ver raiar o dia
e de repente
estar tudo tão diferente
que a nossa felicidade se chamasse
toda a gente

Ai!, tão bom que seria
poder enfim olhar de frente a alegria
não ouvir a voz do medo
da fome da tirania
da vergonha e do segredo

Ver o teu corpo lindo à luz do sol
ver pintada de riso uma viela
e mil fogueiras a dançar pela cidade
com a chama da verdade
num rodopio sensual
ao bater de uma chinela

Ai!, tão bom que seria
adormecer
e acordar no sonho de um menino
e não do de alma penada
volteando amargurada
em busca do seu destino…
1980

Aqui


Aqui me meço
Aqui me esqueço
E arrefeço

Aqui me beijo
E me desejo
Aqui me falo
Aqui me calo

Aqui me espanto
Aqui me sento
Aqui me sei
Aqui me tento
Aqui me canto
Aqui d’El-Rei!

Aqui me dói
Aqui me rói
Aqui me danço
Aqui descanso
Aqui me canso
Aqui me ranço
Isto destrói!

Aqui me abuso
Aqui confuso
Aqui me forço
E me desforço
Isto é da Lei?
Aqui d’El-Rei!

Aqui me sinto
Aqui me dou
Aqui me minto
Aqui me sou.
1978

terça-feira, 28 de abril de 2020

Sem mais (sobre o Fado Licas)


O sol ora se ergue ora se deita;
e assim, tal como ele, também nós
passamos na cadência que sujeita
a vida em que soa a nossa voz.

Vêm e vão a sede, a fome, o sono…
Vêm e vão de novo… E o coração,
do qual, embora meu, não sou o dono,
bate o tempo da minha duração.

Nisto algo me encaminha sem caminho,
dentro e fora do corpo em que me enleio,
em que me acho e perco, quer sozinho
quer tendo outro corpo de permeio.

Voltarei ao mistério de onde vim,
de onde trouxe este modo de aqui ser.
E o que sou não chega nem p’ra mim…
De meu, só o amor p’ra oferecer.

Poemas (sobre o Fado Isabel)


Poemas são só as notas
à margem da nossa vida,
esconjuros de feiticeiro,
troços de rota perdida,

brasas que voam do lume
do mistério que arde em nós,
grito de prazer, queixume,
pranto alegre, riso atroz,

preces surdas para domar
o Tempo que nos devora,
vingança pura a brilhar
com a beleza da aurora,
  
piruetas e magias
de iludir o desencanto,
ilhas secretas que emergem
do fundo de um mar de espanto…

Que poemas como barcos
à descoberta da vida
esses canta a minha boca
se anda na tua perdida.